Pão de queijo of the dead
- Flávio Karras
- 31 de jul. de 2020
- 3 min de leitura
Abri a porta do freezer. Ao lado da vasilha com cheiro verde picado e grudada a um saquinho com beterraba congelada, retirei a embalagem com pães de queijo.
O forno esperava pré-aquecido. Forma untada, tudo certo para a munição durante a tarde de filmes. Final de semana abençoado.
Após alguns minutos a cozinha é tomada pelo cheiro morno, agradável que dança entre o queijo parmesão e o polvilho. Hum... o doce cheiro de cadáveres.
Carregado pela memória olfativa direto para minha época de adolescência, estou vestido com meu uniforme acinzentado do saudoso Instituto de Ensino de São Caetano do Sul (seu prédio deu lugar a um estacionamento, mas nos 90 tinha uma estrutura opulenta e respeitável) e acompanho a turma do colegial pelos corredores da Faculdade de Medicina do ABC.
A leva de alunos carregando espinhas e hormônios olha curiosa para o ambiente promissor da “faculdade”, por si só a palavra tinha peso de responsabilidade e futuro. Sim, éramos inocentes. Guiados pela professora de biologia, uma senhora com forçado sotaque italiano-macarrônico, atravessamos algumas salas até chegar ao que interessa: sessão de anatomia.
Por trás de duas portas metálicas diversas mesas para necrópsia traziam seus respectivos cadáveres.
Esperava alguns corpos bem formados, quiçá frescos e ainda mantendo resquícios de seus ares em vida, mas a realidade era bem diferente das imagens “bonitas” dos filmes do Cine Trash. Deitados no sono eterno os mortos se resumiam a corpos esturricados pelo formol. A pele seca quase quebradiça ganhava tons não naturais, as camadas de gordura se tornavam grandes camadas como cobertores amarelo gema de ovo.
Os olhos. Ah, os olhos. Pensei em ter minha imagem refletida em uma íris cadavérica. Ledo engano. As órbitas quase vazias traziam rasos olhinhos em seu fundo. Secos. Uvas passas que flagraram tanto e agora se escondem dos cutucões dos alunos curiosos.
Um amigo abre o balde e logo é alertado por um funcionário do local a usar luvas. Ele as calça. Suas mãos mergulham no grande recipiente e voltam trazendo um belo, porém molenga, cérebro.
Se este mesmo amigo soubesse como este raro item faria falta em sua idade adulta, não teria feito piadas e o descartado após ensaiar um voo de massas cinzentas.
Para quem critica a aparência natural dos órgãos lá de baixo, com formol elas ficam ainda pior, com visual de esturricados pedaços de torresmo e um envergonhado bacon (acredito que conseguir criar a imagem mental para o nobre leitor).
Formol. Continuei inebriado pelo aroma então inédito. O cheiro do produto fazia parte do ambiente. Alguns colegas deixavam o recinto para assoar o nariz, outros tapavam as narinas com a camiseta, tinha aqueles que foram conhecer o tanque onde outros corpos ficavam à disposição dos estudantes de medicina. “É só enganchar um e trazer para cá”, dizia o funcionário.
Dos cadáveres secos fui atraído para as peças fatiadas e envidraçadas. Braços, pernas em cortes precisos. Duas ou três cabeças bocejando entediadas. O que diriam aos pivetes? Algo profético? Um testemunho do outro lado? Um belo palavrão por estarem fuçando onde não é devido? Aposto que se pudessem falar, ficariam em silêncio como testemunhas cientes de tudo, reclusas em seus conhecimentos premonitórios.
Sorvia inesperadas gotículas de saliva que teimavam em escorrer pelos cantos de minha boca quando o passeio acabou cedo demais para minhas expectativas. Voltamos ao som de comentários que iam da repulsa, nojo, admiração, e eu ali sendo tomado pela vontade de comer pão de queijo.
Anos se passaram e a associação continua.
Alguns conhecidos relatam peculiares episódios da memória olfativa. A quem sinta o cheiro de pós barba e se lembre de algum parente, o cheiro de orégano com vinagre capaz de evocar o mal hálito de algum desafeto, chulé com queijo, canela em pó com dias de chuva...
“Trim”, tocou o forno elétrico.
É chegada a hora de comer meus cadáveres.
Bom apetite para mim.
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