
— Que merda é essa? Enlouqueceu?
— Fala baixo. Aqui é confiável?
— Ninguém viu a gente entrando, este setor do esgoto é restrito.
— Impede o rastreio?
— Só deixa mais difícil, mas não impossível. Anda logo, o que você quer?
— Não vamos trombar com algum daqueles robôs desgraçados por aqui?
— Aquelas latas enferrujadas são raras nestes cantos, odeiam se sujar.
— Que horas são?
— Ainda 23h58, mas e aí? Qual é o lance? Meu terceiro turno vai começar daqui a pouco, anda logo.
— Lá no meu primeiro trabalho chegou o acervo de uma farmácia falida.
— Em pleno ano de 2315 o povo insiste em abrir farmácia? Dá para comprar tudo pela internet e imprimir em casa, tem que fechar mesmo.
— O diferencial era o atendimento ao público no balcão.
— Humanizado, né? Que merda antiquada. Feita para não dar certo.
— Mas então, sobrou para mim. Sou o responsável pelo estoque, separei os lotes: vencidos, acréscimo ao inventário, para doação ou para o incinerador. Daí encontrei essa caixinha aqui.
— Remédio para pau mole?
— Lê a embalagem antes de falar merda.
— “Sonho”. Nunca ouvi falar. Parece remédio para bebê.
— Eita, sua bisavó nunca falou disso com você?
— É raro conversarmos. Inclusive, a velha está trabalhando a uma hora dessa, como eu também devia estar.
— Bem, a minha avó falava disso comigo quando nos encontrávamos no vestiário até ela ser aniquilada.
— Gostava dela, mas a empresa precisava reduzir gastos; e ela era um tanto implicante com aquela frescura de dor nas costas.
— Mas você quer saber desse remédio ou não?
— Vamos, vamos logo com isso, vou perder a hora.
— “Sonho” era um medicamento popular ao fim da última pandemia.
— Aquela dos frangos catarrentos?
— Não, a outra.
— Da água borbulhante contaminada?
— Aquela pandemia do céu roxo, quando era obrigatório o uso de guarda-chuvas dentro de casa.
— Ah, lembro sim. Acabou de pirar quem não pirou na outras, mas e daí?
— Algumas pessoas não conseguiam mais planar.
— Planar é coisa de burguês! É para ter dó? Eles planam dez horas por dia! Enquanto eu, exemplo de engrenagem, trabalho. Eles lá, deitadinhos, olhos fechados com aquele monte de eletrodos na cabeça. Planam todo dia! Eu nunca, nunca fiz isso!
— Fala baixo!
— Vou até tomar minha dose de cafeína, um minuto. Quer uma?
— Não, não, já tomei.
— Essa é a minha trigésima quinta, estou tentando aumentar. Tenho metas, e seus amigos bem nascidos planam.
— Eles nunca foram meus amigos.
— Sabia quem tem gente que plana e sai falando outras línguas? Aí fica fácil, e eu lavo esgotos, programo drones limpadores de bunda para a elite e monto marmitas para o povão. Falando nisso, a partir de amanhã mudaremos os sabores.
— Poxa, eu estava me acostumando com o gosto das raspas de ossos.
— Falta de matéria prima. Teremos os sabores “lixo hospitalar” e “ração de gato”.
— Ração que gato come ou feita de gato?
— Vou deixar a surpresa para o seu paladar. De qualquer forma, enquanto seus amigos planam. “Planar para atualizar”, eles dizem; eu me fodo em quatro turnos de trabalho.
— Posso continuar a falar sobre o remédio?
— Pode, vai.
— Promete calar a boca?
— Sou um túmulo, mas essas merdas me pegam a veia. Adoraria planar um dia e ter um daqueles trecos horizontais em casa, como é o nome?
— Cama.
— Isso. Casa de engrenagem só tem privada para sentar.
— Continuando, se você me permitir. A galera na época não conseguia planar, então alguém trouxe uma parada pré-história, este remédio, uma mistureba de ervas.
— Vish... drogas?
— Parece que sim, estou lendo aqui: camomila, erva cidreira, passiflora e erva doce.
— O bagulho deve ser louco.
— Daí vem um tal de estado de relaxamento...
— “Relaxamento”?
— Tipo “stand by”, sabe?
— Ah, sim.
— A mente para de pensar e o corpo fica travado, paradão.
— Tipo morto?
— Mas vivo.
— Vish.
— Não fica só nisso, o que tem na sua memória é exibido dentro da sua cabeça.
— E lá vou eu relaxar pensando em trabalho?
— E coisas que você nem sabia.
— Não sobra mais nada.
— Coisas que vem de fora das suas percepções. Coisa louca mesmo.
— Um planar com defeito?
— Você não vai sair com outro idioma ou habilidade para ganhar dinheiro, mas renovado, cheio de disposição e energias.
— Para isso tomamos nossa cápsula de cafeína, sempre dispostos.
— E por isso cospe sangue.
— Quem não cospe sangue hoje em dia?
— Isso aqui é renovação natural.
— Não faz sentido.
— Como se fosse uma calibragem e alinhamento, entendeu?
— Ah, sim.
—Sua imaginação cria uma aventura dentro da sua própria cabeça adormecida.
— “Imaginação”? Lá vem você com essas palavras do século retrasado.
— É como se estivesse imune aos algoritmos da internet.
— Não faz sentido mesmo.
— Eita. Fica quieto. Está ouvindo isso?
— São apenas as ratazanas. A próxima ronda nos esgotos é daqui algumas horas. E por que o pessoal parou de usar o remédio, se era essa maravilha?
— Atrapalhava o planar. Não dá para atualizar a “sonhar” ao mesmo tempo.
— E virou remédio para crianças? A embalagem é toda colorida com recém-nascidos entubados e sorridentes.
— Precisavam escoar a produção e algumas mães naturebas da época davam isso para os filhos ao invés de planar. Até que a modinha passou.
— Que tipo de gente é essa? Até eu que sou pobre não sofri tanto quanto os filhos dessas mães piradas, na minha incubadora só me serviam os bons e velhos psicotrópicos. Lembro de um neuroléptico que eu comia aos cinco aninhos antes do trabalho. Qual era o nome mesmo?
— Aquele crocante azulado?
— Não, o que tinha formatos de engrenagens e parafusos. Desmanchava na boca.
— Ah, era o “empreendedorzinho atômico”.
— Esse mesmo. A musiquinha tocando nos alto-falantes da fábrica, “enquanto eles planam, você vai trabalhar...”.
— “Enquanto eles planam, o futuro você constrói...”.
— “Enquanto eles planam para o seu bem-estar...”.
— “Trabalhe, trabalhe, trabalhe... empreender é trabalhar”.
— Que delícia, gostinho do saudosismo.
— E olha que séculos antes disso as pessoas dormiam.
— Aham. Mais de oito horas do dia desperdiçadas sem fazer nada.
— Nadinha.
— Ainda bem que isso foi proibido.
— Não podemos perder o foco. E aí? Vai querer provar?
— Leia a bula.
— Efeitos colaterais. Secura da boca, sudorese, vasodilatação, calafrios, hipersensibilidade, prurido, erupções da pele, urticária, reação anafilactóide, vasculite, angioedema, síndrome serotonérgica, fotossensibilidade e eritema multiforme. Diarreia, náusea, vômito, disfagia, dispepsia, equimose...
— O que é prurido?
— Sei lá, parece nome de doce.
— Por mim tudo bem.
— Vamos nessa?
— Não sei, não quer ir você primeiro?
— Fique de olho se chegar alguém. Grite se aparecer um robô.
— Claro, não quero ser aniquilado por não ter iniciado o meu turno ainda.
— Combinado. Estamos na mesma situação. Se pegarem você, também vão me pegar. Moral da história: duas engrenagens destruídas.
— Engole logo o comprimido, cacete.
— Não deixe meu corpo tombar para dentro do esgoto, não quero me afogar.
— Vou deixar seu corpo parado, na horizontal, como os burguesinhos planam.
— Mas eu vou sonhar.
— Vai lá. Engole essa merda, logo. Te chamo daqui 34 minutos.
— Até.
— Espera, eu começo.
— Ué, mudou de ideia?
— Vou primeiro, volto primeiro e consigo retornar ao meu turno 100% após esperar você retornar, não quero chegar sem foco no trabalho.
— Toma aqui o comprimido, senhor super proatividade.
— Não trouxe uma garrafinha de água para tomar junto?
— Tem água de esgoto serve?
— Não, não, muito azeda. Bem, vou nessa. Mas... na bula não tem mais instruções?
— Acho que o mais importante é engolir. Vou dar uma olhada aqui. Vamos lá. Instruções. O comprimido deve ser ingerido com o corpo na posição horizontal.
— Horizontal, confere.
— É sugerido ao paciente aguardar inerte os efeitos de olhos fechados. Só isso. Não é muito difícil, acho que você consegue.
— Que estranho ficar de olhos fechados.
— Vai logo.
— Nem me lembro como ficar deitado.
— Se não parar, não vai funcionar.
— Comprimido para dentro. Tchau!
***
— Puta que pariu.
— Opa. Voltou, e aí? Você estava dando um tremeliques.
— Meu... meu corpo ainda está aqui? Está saindo água dos meus olhos! Eu saí daqui, não lembro como. Tem água vazando dos meus olhos, estou perdendo fluídos? É minha lubrificação? Como voltei para cá? Preciso, preciso ir.
— Calma, senta aí. Para de fazer barulho. Conta aí, o que rolou?
— Eu estava na superfície, lá em cima, fora dos turnos, além, além. Sem penalidades, sem cápsulas de cafeína, sem disparos de armas a laser tentando me aniquilar. Corri em câmera lenta, mal parecia tocar o chão. Nossos companheiros engrenagens estavam fora das linhas de montagem, um formigueiro desordenado sem este macacão cinza. Nos tocávamos, nos reconhecíamos através do contato da pele escondida pelo uniforme. Soltei grunhidos desafinados que apenas os nossos antepassados faziam. Uns gritos estranhos e empolgados.
— Risadas? “Riu” como nossos ancestrais?
— Deve ser. É bizarro. E...por que sai tanta água dos meus olhos? Nem consigo falar direito. Havia placas, mas não consegui ler, ignorei as ordens, as escalas de serviço. Ultrapassamos por dentro do forno industrial desativado, ninguém mais era engolido pelo fogaréu, rasgamos as cercas, escalamos as muralhas para mergulhar em um esgoto escorrendo pelo horizonte.
— Credo, nosso esgoto?
— Esgoto diferente, azul, sem fedor. Nas suas margens uma espuma branca desenhava no chão de areia. Nada de concreto ou placas de ferro. Molhei os pés. Sem pressa. A multidão pelada apreciava a paisagem. Sem pressa, sem cronometrar nossos dias, sem turno, sem metas ou satisfações. E sem precisar programar meus malditos drones limpadores de bunda!
— Incrível.
— Preciso ir lá em cima.
— Calma, senta aí. Isso é só coisa da sua cabeça. Só um sonho.
— É tão real como essa maldita água brotando dos meus olhos. Há algo além das repartições. Só sonhando vi além. Enlouqueci? Esse remedinho para crianças me pirou? Sei lá. Quero arriscar essa simples possibilidade. Eu nunca parei para pensar nisso, por quê?
— Porque nunca parou.
— Posso tomar outro comprimido?
— Não era você que queria voltar ao trabalho?
— Ele pode esperar.
— Agora é a minha vez, depois a gente se acerta.
— Algum perrengue neste meio tempo?
— Um barulho ou outro, nada sério. Fora isso, nenhum vigilante ou robô de rastreio. Se tudo der certo, poderemos usar esse canto para sonhar. Esses atrasos vão nos custar apenas algumas advertências ou desconto na cota de alimentação.
— Passo até fome para poder sonhar de novo.
— Fica de olho, aí?
— Vai fundo!
***
— Acorda, acorda! Puta que pariu. Nem com tapa na cara desperta. Alguém está chegando, tem umas luzes no final da tubulação. Vamos! Não consigo te arrastar daqui. Está se aproximando, acorda! Não vou te deixar só, mas não posso me foder por você. Não tem lixo para nos cobrirmos, e agora, e agora? Acorda, desgraça!
— ALTO LÁ!
— Acorda! É um robô, é um robô. Puta que pariu!
— NÃO SE MOVAM! IDENTIFICO DUAS ENGRENAGENS EM PARALIZAÇÃO NÃO AUTORIZADA!
— Estamos no turno do esgoto!
— IDENTIFIQUEM-SE.
— Acorda, vamos, vamos, filha da puta! Ainda dá tempo para correr.
— IDENTIFIQUEM-SE!
— Boa madrugada, meu querido fiscal eletrônico metalizado de inteligência artificial humanizada, mas eficiente.
— IDENTIFIQUEM-SE!
— Hélice Vieira e Correia Alternador da Silva, senhor.
— DESVIO DE TURNO NÃO AUTORIZADO. NÃO SE MOVAM.
— Puta merda.
— QUAL OCORRÊNCIA COM ESTA MÃO DE OBRA TOMBADA AÍ AO LADO?
— Colega, quer dizer, a mão de obra? Está...está avariada.
— PROCESSO DE ANIQUILAÇÃO INICIADO.
— Espera, espera! Abaixe esse canhão a laser, aí. É só esperar uns minutos, é falta de capsula de cafeína.
— NÃO TOMOU AS CÁPSULAS DEVIDAS PARA MANTER O DESEMPENHO?
— Acho que não.
— PROCESSO DE ANIQUILAÇÃO INICIADO.
— Peraí, eu trouxe esta mão de obra para cá.
— REMANEJAMENTO NÃO AUTORIZADO. PROCESSO DE ANIQUILAÇÃO DE AMBOS INICIADO.
— Oh, caramba. Eu trouxe a engrenagem para cá para não afetar a linha de produção. Ninguém quer atraso e resultado defeituoso, não é? Daqui a pouco será restituída à força de trabalho.
— MÃO DE OBRA AVARIADA ATRASADA PARA O TERCEITO TURNO: ETIQUETAGEM DE PRODUTOS CONSERVANTES DE HUMANOS.
— E voltará melhor ainda! Olha só, ouviu esse rosnado?
— SOM ANCESTRAL IDENTIFICADO: RONCO.
— Não, não. É a fera interior pronta para trabalhar no terceiro turno, etiquetagem do que mesmo?
— DE PRODUTOS CONSERVANTES DE HUMANOS.
— Ah, aquelas frescuras do povo planador... produtos para a pele ficar sedosa, durar uns duzentos anos, beiços carnudos, carinha de bonecos, peitões, bundões, pintões, cuzões.
— PROCESSO DE ANIQUILAÇÃO INICIADO.
— Qual produto usa, senhor metálico de inteligência cheia de bytes competentes?
— ÓLEO LUBRIFICANTE E ANTIFERRUGEM.
— Nada para melhorar sua tez ou sua voz cibernética? Nada contra seu timbre, claro.
— PRODUTOS NÃO AUTORIZADOS.
— E se pudesse usar, usaria?
— QUESTIONAMENTO NÃO CATALOGADO NA FAQ.
— Acredito que o senhor ficaria ótimo com um upgrade. Faria sucesso com os eletrodos, plugues ou as tomadas, hein? Não sei qual é a sua preferência que te dá mais...digamos...prazer.
— APRECIO TODOS, OU MELHOR, QUESTIONAMENTO NÃO AUTORIZADO. MÃO DE OBRA ATRASADA. PROCESSO DE ANIQUILAÇÃO INICIADO.
— Calma, calma. Toquei em um ponto sensível, reconheço. Vou voltar para o meu turno, enquanto isso deixo essa mão de obra avariada aqui, pode ser? Vou voltar para a minhas marmitas. Qual seu sabor preferido?
— ESTA UNIDADE NÃO ESTÁ MUNIDA DE PAPILAS GUSTATIVAS.
— Oh, judiação. Só tem esse canhão aí para amedrontar pobres engrenagens?
— ESTA UNIDADE POSSUI CANHÃO, CHICOTE, REDE ELETROCUTADA, ALGEMAS, GÁS VENENOSO E UM CONSOLO COM VIDRO MOÍDO.
— Mas sentir o gosto que é bom...
— NADA.
— Se sentisse um sabor. “Se”, é apenas uma hipótese. Se essa língua que você não possui pudesse sentir um gosto, qual seria?
— PROCESSANDO...PROCESSANDO.
— Vá além dos algoritmos, escape dos engajamentos compulsórios. Imagine, quer dizer, processe você rodeado de plugues e tomadas sussurrando o seu nome. Qual o seu nome?
— UNIDADE MÓVEL VIGILANTE E DESTRUIDORA 7STV8&R%£ - YELLOW.
— Vou te chamar de Amarelo.
— NOVO RONCO IDENTIFICADO DA MÃO DE OBRA AVARIADA.
— Calma, Amarelinho. Foco em mim e nos eletrodos, plugues e tomadas. Coisa fina. Eles te desejam, querem você. Estão subindo pela sua estrutura metálica, sussurram seu nome.
— PROCESSANDO...PROCESSANDO.
— Qual sabor vem ao seu processador?
— TUTTI FRUTTI.
— Não sei o que é isso, mas deve ser uma delícia. E se eu lhe dissesse que você pode viver isso?
— PROCESSANDO...
— A resposta é sonhar.
— SONHAR. VERBO INTRANSITIVO, VERBO PRONOMINAL, VERBO TRANSITIVO DIRETO E VERBO TRANSITIVO INDIRETO. TIPO DO VERBO SONHAR: REGULAR. SEPARAÇÃO SILÁBICA: SO-NHAR.
— Gramática nota 10, agora é só experimentar. Vamos seguir por aquelas tubulações ali na frente. Vou te mostrar.
— MÃO DE OBRA AVARIADA.
— Deixe aí, você merece sonhar. Sua existência não é só aniquilar, matar, explodir.
— MATAR DIVERTIDO.
— Mas você vai além disso! Lembra quando era só um protótipo pequenininho? Aposto que sua mamãe era uma bateria muito dedicada.
— CONCORDO COM OS TERMOS.
— E seu papai era um pistão cansado, mas sempre bombando e sem tempo para o filhinho.
— CONCORDO COM OS TERMOS.
— Tão cheio de possibilidades. É um desperdício de talento só matar, matar, matar. Você pode ir além, não é um eletrônico qualquer sem oportunidades.
— ELETRODOS, PLUGUES, TOMADAS...E PILHAS.
— Pilhas? Tudo é possível. Venha comigo, não vamos nos dar ao trabalho de aniquilar uma mão de obra em processo de restauração e deixar o esgoto pior ainda com um cheirinho de churrasco, não é?
— EXCEÇÃO HABILITADA.
— Vamos. Cruzando aquela esquina do encanamento, logo ali, eu te mostro como sonhar e pensar fora da caixinha, ou melhor, fora dessa cabeça quadrada de metal.
***
— Cadê? Cadê? Estou só? Não, não pode ter me deixado sonhando aqui para retornar ao turno. Tudo tão silencioso, nenhum movimento pelos encanamentos, nenhuma luz, nada. Não pode ter ido para longe. Ou pode? Por quanto tempo apaguei? Não houve aniquilação, não sinto cheiro de carne queimada. Meu coração parece querer explodir, mãos geladas, boca seca. Seria um efeito colateral? Taquicardia, arritmia, infarto? Vou morrer? Esse remédio vai me matar? Se eu morrer vou faltar ao trabalho. Não, não. Vou pegar a bula novamente. Não tem nada disso aqui, não cita coração. Ao final da folha uma observação “em alguns casos é constatada a ocorrência de pesadelos, entre em contato com o SAC”. Ainda tremo com os gritos ecoando dentro da minha cabeça. Dançávamos em um amontoado de tripas pelo chão. Tripas robustas, hidratadas com o melhor da alimentação e qualidade de vida. E nós, as sempre esqueléticas engrenagens, brindávamos com bebidas estranhas. Não havia linha de montagem, porque tudo desmontado era o certo, não havia produção, tudo já produzido nos bastava. Me vi levantando uma cabeça decepada cheia de eletrodos e cabos. Alguém planava quando o atacamos. Meu peito vibrava de alegria e agora é de pavor. Onde Hélice foi parar? Preciso sair, voltar à linha, tenho outros produtos para catalogar, uma imensidão de caixas de “Sonho” ainda sem destino, não sei o que me espera. Advertência, suspensão, aniquilação. Opa! Ouço algo, um eco tímido pelo esgoto. Barulho metálico, algo delicado e contínuo. Um robô? Um maldito canalha metálico? Os estalidos são acompanhados por gemidos. Seria Hélice? Seria aniquilação em processamento? Preciso ir até lá. Minhas pernas bambeiam, ainda estão sonhando. As vistas se acostumam à pouca luz. Caminho pela água morna e suja, sigo o som pouco a pouco mais nítido. Virando a esquina o barulho ganha forma de batuque musical. Uma batida no ritmo de... “empreendedorzinho atômico”?
— Pode vir, pode vir.
— Hélice, puta que pariu. Que é isso no seu colo? O que está espiando pelo bueiro? O que...
— Xiu. Vem cá ver.
— Está batucando em um pedaço de cabeça de robô?
— Aham, é a parte de cima, o cocuruto de um robô assassino, não é bonitinho?
— Você está rindo? Trombou com um verme metálico e ainda faz piada?
— Enquanto você roncava, apresentei o remédio a ele.
— Apresentou o “Sonho” para um agente do governo? Vou ser aniquilado, pronto.
— Vem cá dar uma espiadinha.
— OK. Dê um espaço para eu subir. Vejo um monte de robôs vigilantes juntos sem fiscalizar ou rastrear nossos companheiros de linha de produção. Ué.
— Aham.
— Parecem agitados, ouço uns bips daqui. Um robô com a cabeça aberta é o centro das atenções.
— De onde acha que veio esse escalpo? É hora de torcer para o robô calvo.
— O compartilhamento de informações parece intenso entre eles.
— Sistema operacional desses assassinos se parecem em muito com o dos limpadores de bunda automáticos que programo no meu primeiro turno.
— Você resetou o grandalhão?
— Digamos que eu o convenci a sonhar através de um curto-circuito.
— Estou até com medo de saber o sonho deles.
— Só querem plugues, tomadas e pilhas... e eletrodos.
— Aqui só temos ventoinhas e rebimbocas rústicas.
— Mas são fáceis de encontrar no equipamento para planar.
—Será um pesadelo para a burguesada, hein?
— Nada diferente do que enfrentamos todos os dias. Vamos voltar ao trabalho?
— Agora você quer trabalhar?
— Pegue quantas caixas do remedinho conseguir e leve para o refeitório.
— Sem os robôs no caminho isso será fácil.
— As marmitas de hoje terão uma sobremesa.
— Nada de comida de gato, espero.
— Para os robôs, curto-circuito. Para os planadores, pesadelos.
— E para as engrenagens?
— Doces sonhos.
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