Desenho um rosto sorridente na base da luminária. Um rostinho simpático feito na poeira. Aproveito o dote artístico inesperado para desenhar estrelas na impressora. Acabo me empolgando e desenhando também na mesa, agora mais audacioso: pintos e bundas. Chego à conclusão de que sou um péssimo desenhista e que preciso limpar a casa.
No meio de tantas obras de arte, a tela do computador me encara perguntando. Eu respondo de imediato não ter justificativa, não ter um porquê de começar a escrever uma chronica se não há narrativa cronológica de eventos. Chronica do chaos.
Não sei quanto tempo passou e me pego olhando o reloginho no canto direito do monitor. Já é hora do almoço e não redigi coisa alguma. Já é hora do cafezinho da tarde e não me vieram ideias. É hora de dormir, talvez amanhã.
Por mais de um instante temo não saber o que escrever. A ideia de histórias do cotidiano semanalmente me assusta a ponto de olhar para os lados na busca de inspiração além das paredes do quarto e das reações das redes sociais, além do curtir e compartilhar.
Saio à rua para ver o movimento. Movimento além do esperado e do recomendado, afinal, estamos em quarentena, teoricamente. Na maioria pessoas mascaradas. Digo aquelas máscaras para tampar o nariz e a boca. A outra, aquela das personalidades, está fundida à pele.
Órbitas agitadas, entediadas, envidraçadas tropeçam pela rua. O batom que não vai mais na boca saltou para o excesso de delineador. Cílios até então esquecidos são alongados, curvados, rasgam o ar como navalhas em uma piscadela. Um harém urbano.
A voz contra o algodão abafa as sílabas quando tento cumprimentar a caixa do supermercado. Sua máscara é rosa com florzinhas delicadas, a minha é branca e amassada, quase uma cueca na altura do queixo. Foi minha primeira opção, tenho outra que parece uma focinheira azul, mas talvez não combinaria com meu short de praia e chinelo de dedo. Elegância, queridos contaminados.
Cueca ou focinheira? Qual é a melhor forma de amordaçar? Amordaçar... talvez uma crônica safadinha sobre o tesão acumulado no período de quarentena. Seria interessante. A vontade de transar e provar outras salivas que logo foi substituída por uma masturbação desengonçada e pouco inspirada. Gozadas desaguando expectativas na porcelana, levadas pelo chuveirinho, tremidas com o vibrador ou nas singelas pontas dos dedos. Quarentena valoriza o toque humano.
Largo esses pensamentos. Busco distância. Longe, longe. Como um astronauta vejo o planeta como um azul honesto, limpo e esperançoso. À distância tudo parece mais bonito. Desconecto o oxigênio. Se for para morrer pela dificuldade de respirar, prefiro estar longe de todos. Sem lágrimas falsas ou pieguices. Sou tomado por um ar mórbido. Que fúnebre. Mas os que estão lá embaixo também não conseguem se desvencilhar, e que outro assunto nos domina nestes dias que não a morte? Ah, sim. Política. Política e morte me trazem de volta do espaço para a cadeira na frente do notebook.
Espirro com a aterrissagem. Sem máscara sujei o notebook.
Covid? Não. Só poeira e catarro. Finalmente, preenchi a tela.
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