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Não aperte, não esprema

Flávio Karras


Ela riu enquanto apontava na sua direção. O convite para a balada foi negado quase com violência. O que podia ter feito de errado? Voltou para casa cabisbaixo, seu plano perfeito havia naufragado e pelo visto ninguém fugiu no bote salva-vidas. Não havia outra forma de reutilizá-lo, não havia plano B, restou engolir o azedo da negativa e seguir a vida – Mas por que ela disse não? A escadaria para seu quarto era íngreme demais para a tristeza que carregava nas costas, a derrota sem motivo, sem explicação, sem conhecer o adversário. Encarou o reflexo no espelho, sua roupa não era das piores. Roupa nova e passada, ainda cheirava cabide de loja. Seu penteado estava aceitável, digno da sua idade. O rosto – Bem, não sou um exemplo de beleza, mas não sou o demônio reencarnado. Por que apontava para mim? Escovei os dentes, não estou com mal hálito, a pouca barba que tenho está aparada – um ponto vermelho no canto direito do nariz chamou sua atenção. Um vermelho discreto que ao simples toque irradiou dor pelo rosto, escalando a bochecha até a altura dos olhos – Como eu não vi isso? Este é o motivo, estou prestes a ter uma espinha. É por isso que ela riu de mim! Levou o avermelhado para ser consultado pela mãe. Ao ver a ameaça no rosto do filho arregalou os olhos: “não aperte, não esprema, deixe como está que vai sumir sozinho. Não encoste”. Pensou – Sumir sozinho? Por acaso isto tem vida própria? Abriu a gaveta pronto para declarar guerra. Capturou o tubo de pomada “seca e cai – fim das espinhas”, besuntou a ponta dos dedos e partiu para o ataque. Passou o dia com o rosto gosmento esquivando-se dos olhares curiosos da família. Trancado no quarto, deitado, esperou as horas passarem e o dia acabar. Acordou reluzente, pronto para ver o resultado da pomada. O rubor havia sumido, mas no seu lugar crescera uma ilha amarelada, um grão de milho pronto para eclodir – Se da última vez ela riu, agora vai gargalhar. Precisava ir ao colégio, mas não poderia passar pomada novamente sem que fosse motivo de chacota. No café da manhã os olhos maternos esbugalharam mais uma vez “Que coisa horrenda! Custe o que custar, não toque nisto! Não aperte de forma alguma!”. Cobriu o vulcão de pus com um esparadrapo. Seus amigos perguntaram se “havia posto a espinha para dormir, que linda coberta”, “há um nariz no lado da sua espinha”, dentre outras provocações. Torceu para que as aulas mais compridas da sua vida acabassem logo e que sua paquera não o visse, não queria ser o Quasímodo de sua Esmeralda. Voltou para casa correndo, apesar do peso que puxava seu nariz para baixo. O pescoço doía, precisava se libertar daqueles litros de gosma amarelada represada sob a pele. Abriu a gaveta, chorou ao ver a embalagem da pomada vazia. Não tinha tempo, nem dinheiro para comprar outra. Pediu socorro ao pai. O velho desviou o olhar com o jornal a frente do rosto. “Leite morno com aveia pode acabar com isso aí”. Não entendeu o quanto um mingau ajudaria a acabar com a espinha, mas preparou e tratou de submergi-la na mistura rica em cálcio e fibras. Depois de cinco horas não suportou o cheiro de leite azedo, lavou o rosto e lá estava. Não mais o milho encapsulado de pele, mas um dedo amarelo e brilhante atravessando sua carne. Um amarelo vivo, quase uma barra de ouro opaca. Tentou tocá-la, a dor foi intensa, dominando sua cabeça, marejando seus olhos. “Não aperte, não esprema”, lembrava-se das palavras da mãe. Mas não havia outra alternativa, precisava arrancar aquilo de sua cara ou sua vida não retomaria o curso normal – Vida? Esta espinha esta sugando toda minha vontade de viver. Ignorou os avisos da mãe. A espinha já estava forte o bastante para se virar sozinha – Longe de mim, de preferência – apontou os dois indicadores. Um de cada lado, o ser não teria como escapar. E apertou. A dor contra atacou num espasmo que o fez perder a respiração. Mas não desistiu. Apertou novamente e outra vez. Lágrimas desenhavam seu rosto, os dentes rangiam, o oxigênio cessou e “flopt!”. O tijolo de pus bateu contra o espelho trincando-o. Na sequência um jato do amarelado liquefeito o acompanhou enchendo a pia de pus, os dedos não eram capazes de deter a avalanche brilhante que saia ao lado do nariz. Sentiu sua pressão baixar enquanto derrubava a coleção de shampoos na prateleira com a tromba líquida – Pus, pus, pus! Isto não tem fim! - a sola do tênis grudava no chão, a piscina dourada crescia no piso do banheiro e ia subindo. Joelhos e cintura, tudo estava sendo tomado. O jato foi mudando de cor, de amarelo para rosa e só então um vermelho vivo. Tateou para estancar a saída, suas mãos adolescentes não eram hábeis o bastante. O líquido subia na altura do pescoço. Tentou gritar, mas já alcançava seu queixo. No último suspirou a voz da mãe ecoou em sua mente. “Não aperte, não esprema”.



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