Na tarde de ontem esteve presente na delegacia desta comarca um jovem de aproximadamente vinte e poucos anos para dar queixa de furto. Alguém havia surrupiado seu coração tipificando o delito disposto no artigo 155 do Código Penal.
Ao escrivão de plantão a vítima relatou ter sentido um frescor molhado indo e vindo em seus calcanhares, só então acordou, se dando conta de estar deitado na beira da praia no meio da manhã e com uma intensa enxaqueca. E, antes mesmo de conferir o bronzeado ou a bela paisagem, reparou que sua caixa torácica estava aberta.
– Bem, suas costelas estavam cortadas de um lado, mais outras cortadas para o outro. Um claro sinal de arrombamento seguido de furto. – Sentenciou o escrivão diante de mais um caso para sobrecarregá-lo. – Você chegou a conferir os órgãos?
– Estavam desorganizados.
– O vagabundo estava com pressa. Mas conferiu um a um para ver se não levaram mais nada?
– Intestino OK, pulmões OK, rins OK com uma pedrinha lá e cá, fígado OK, mas poderia estar melhor.
– Só sem coração, mesmo?
– Já viu caso assim?
– Pergunte o que não tivemos por aqui. Tem caso de povo com olho, mas não se enxerga, quem não ouve e não é surdo. Vamos rápido, estou sem paciência.
– Surrupiaram a sua também?
– É de nascença mesmo.
– Vão investigar o meu caso?
– Pouco provável. Furto vai para o fim da fila. O que te levou a dormir na praia?
– Acho que estava comemorando algo.
– A vida não dá motivo para comemorações.
– É a falta de paciência?
– Não, de expectativa.
– É de nascença?
– Essa eu esqueci em casa. Você estava acompanhado?
– Não. Lembro de ter jogado algumas garrafas ao mar.
– Como se já não estivesse sujo o bastante.
– Eu tinha tomado banho.
– Me referia ao mar, mas tudo bem.
– Banho acompanhado.
– Vamos nos limitar aos detalhes mais importantes sobre o crime.
– Houve uma briga.
– Continue.
– Meu ficante chegou no apartamento e me viu no banho acompanhado por outra pessoa.
– Seu namorado te flagrou…
– Ficante.
– Ok, o ficante te viu com outro cara?
– Uma mulher.
– Entendo, cardápio diversificado é mais saudável.
– Como?
– Nada, lembrei do meu almoço.
– Ela é minha prima, uma viciada.
– Nóia?
– Em pó.
– Você tinha pó?
– Tinha dinheiro.
– Permutas.
– Eu precisava desestressar, minha mãe estava internada.
– Internada?
– Pé na cova.
– Velhinha?
– Cinquenta e poucos.
– Quase minha idade. Coração?
– O meu foi furtado, esqueceu?
– Não, o dela.
– Nervos. Culpa do cachorro dela. O bicho desapareceu e ela pirou.
– Desapareceu?
– Sim, quando eu estava tirando o carro da garagem, o bicho foi para baixo do pneu e…
– E você desapareceu com ele.
– Sim e lavei o carro. Custou caro.
– O enterro do cão?
– O carro. Mandei encerar e passar pretinho, mas deu tempo.
– Tempo de que?
– De vir para a praia, detesto criança.
– E quem gosta?
– Perder meu final de semana? Era minha vez de ficar com o bendito, digo, o moleque lá que tive com uma mina lá.
– Seu filho?
– É o que deu no DNA. Quem mandou ela não tomar remédios, né?
– Nem toda mulher se dá bem com anticoncep…
– Citotec.
– E camisinha?
– Usei com a prima viciada.
– Descreva o coração.
– Dois por dois. Dois átrios e dois ventrículos. Endocárdio, miocárdio e pericárdio de fábrica. Revisado. Único dono. Válvulas brilhando.
– Quanto já rodou, digo, usou?
– Nunca usei.
– Suspeitei.
– Gosto de preservar meus bens.
– Investidor?
– Meu mindset.
– Mas sente falta?
– De empreender uma startup?
– Do objeto furtado.
– Não, mas é meu.
– Ok, ok. Temos até agora que depois da discussão você saiu para beber. Lembra de algo depois?
– Enxuguei algumas garrafas. Caminhei pela praia por um tempo. Lembro de uma discussão em um quiosque.
– Você se envolveu?
– Grandalhões gritavam.
– Seja mais explícito.
– Berravam algo sobre comunismo, vacina, família e Deus.
– Meu Deus.
– Não, só o deles.
– E aí?
– E aí gritavam, só gritavam.
– Cérebro zero quilómetro costuma fazer muito barulho mesmo.
– Agora eu me lembro melhor. Encarei eles me olhando. Minha camiseta era vermelha. “Comunista?”, perguntaram.
– Comunista? Socialista?
– Não gosto de política, sou nulo.
– Então é de direita.
– Então corri.
– Correu e?
– Tropecei e caí.
– Deve ter batido a cabeça, observo o vermelho na sua testa.
– Não sou comunista.
– Me refiro ao tropeção.
– Cai no chão cheio de lixo, devo ter batido a cabeça e acho que desmaiei.
– E aproveitaram o seu estado para afanar seu órgão zero bala.
– Provavelmente.
– Lembra de mais alguma coisa depois?
– Da maré em meus pés. Acordando.
Dando por encerrada a colheita da narrativa, a vítima foi liberada com a promessa de que as providências cabíveis serão tomadas, com engajamento de forte força policial.
A manhã se encerrava e, ao contrário da paciência, a fome do escrivão o preenchia por completo. O funcionário público lembrou da marmita trazida. Restos da pizza do dia anterior, nada mais perfeito. Imprimiu o boletim devidamente registrado e o acondicionou na base da volumosa pilha logo depois da ocorrência sobre um sujeito que perdeu o tempo, um povo sem esperança e um vira-lata perdido.
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