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Foi curtir a praia e acordou sem coração

Flávio Karras

Atualizado: 9 de jul. de 2024

Na tarde de ontem esteve presente na delegacia desta comarca um jovem de aproximadamente vinte e poucos anos para dar queixa de furto. Alguém havia surrupiado seu coração tipificando o delito disposto no artigo 155 do Código Penal.

Ao escrivão de plantão a vítima relatou ter sentido um frescor molhado indo e vindo em seus calcanhares, só então acordou, se dando conta de estar deitado na beira da praia no meio da manhã e com uma intensa enxaqueca. E, antes mesmo de conferir o bronzeado ou a bela paisagem, reparou que sua caixa torácica estava aberta.


– Bem, suas costelas estavam cortadas de um lado, mais outras cortadas para o outro. Um claro sinal de arrombamento seguido de furto. – Sentenciou o escrivão diante de mais um caso para sobrecarregá-lo. – Você chegou a conferir os órgãos?


– Estavam desorganizados.


– O vagabundo estava com pressa. Mas conferiu um a um para ver se não levaram mais nada?


– Intestino OK, pulmões OK, rins OK com uma pedrinha lá e cá, fígado OK, mas poderia estar melhor.


– Só sem coração, mesmo?


– Já viu caso assim?


– Pergunte o que não tivemos por aqui. Tem caso de povo com olho, mas não se enxerga, quem não ouve e não é surdo. Vamos rápido, estou sem paciência.


– Surrupiaram a sua também?


– É de nascença mesmo.


– Vão investigar o meu caso?


– Pouco provável. Furto vai para o fim da fila. O que te levou a dormir na praia?


– Acho que estava comemorando algo.


– A vida não dá motivo para comemorações.


– É a falta de paciência?


– Não, de expectativa.


– É de nascença?


– Essa eu esqueci em casa. Você estava acompanhado?


– Não. Lembro de ter jogado algumas garrafas ao mar.


– Como se já não estivesse sujo o bastante.


– Eu tinha tomado banho.


– Me referia ao mar, mas tudo bem.


– Banho acompanhado.


– Vamos nos limitar aos detalhes mais importantes sobre o crime.


– Houve uma briga.


– Continue.


– Meu ficante chegou no apartamento e me viu no banho acompanhado por outra pessoa.


– Seu namorado te flagrou…


– Ficante.


– Ok, o ficante te viu com outro cara?


– Uma mulher.


– Entendo, cardápio diversificado é mais saudável.


– Como?


– Nada, lembrei do meu almoço.


– Ela é minha prima, uma viciada.


– Nóia?


– Em pó.


– Você tinha pó?


– Tinha dinheiro.


– Permutas.


– Eu precisava desestressar, minha mãe estava internada.


– Internada?


– Pé na cova.


– Velhinha?


– Cinquenta e poucos.


– Quase minha idade. Coração?


– O meu foi furtado, esqueceu?


– Não, o dela.


– Nervos. Culpa do cachorro dela. O bicho desapareceu e ela pirou.


– Desapareceu?


– Sim, quando eu estava tirando o carro da garagem, o bicho foi para baixo do pneu e…


– E você desapareceu com ele.


– Sim e lavei o carro. Custou caro.


– O enterro do cão?


– O carro. Mandei encerar e passar pretinho, mas deu tempo.


– Tempo de que?


– De vir para a praia, detesto criança.


– E quem gosta?


– Perder meu final de semana? Era minha vez de ficar com o bendito, digo, o moleque lá que tive com uma mina lá.


– Seu filho?


– É o que deu no DNA. Quem mandou ela não tomar remédios, né?


– Nem toda mulher se dá bem com anticoncep…


– Citotec.


– E camisinha?


– Usei com a prima viciada.


– Descreva o coração.


– Dois por dois. Dois átrios e dois ventrículos. Endocárdio, miocárdio e pericárdio de fábrica. Revisado. Único dono. Válvulas brilhando.


– Quanto já rodou, digo, usou?


– Nunca usei.


– Suspeitei.


– Gosto de preservar meus bens.


– Investidor?


– Meu mindset.


– Mas sente falta?


– De empreender uma startup?


– Do objeto furtado.


– Não, mas é meu.


– Ok, ok. Temos até agora que depois da discussão você saiu para beber. Lembra de algo depois?


– Enxuguei algumas garrafas. Caminhei pela praia por um tempo. Lembro de uma discussão em um quiosque.


– Você se envolveu?


– Grandalhões gritavam.


– Seja mais explícito.


– Berravam algo sobre comunismo, vacina, família e Deus.


– Meu Deus.


– Não, só o deles.


– E aí?


– E aí gritavam, só gritavam.


– Cérebro zero quilómetro costuma fazer muito barulho mesmo.


– Agora eu me lembro melhor. Encarei eles me olhando. Minha camiseta era vermelha. “Comunista?”, perguntaram.


– Comunista? Socialista?


– Não gosto de política, sou nulo.


– Então é de direita.


– Então corri.


– Correu e?


– Tropecei e caí.


– Deve ter batido a cabeça, observo o vermelho na sua testa.


– Não sou comunista.


– Me refiro ao tropeção.


– Cai no chão cheio de lixo, devo ter batido a cabeça e acho que desmaiei.


– E aproveitaram o seu estado para afanar seu órgão zero bala.


– Provavelmente.


– Lembra de mais alguma coisa depois?


– Da maré em meus pés. Acordando.


Dando por encerrada a colheita da narrativa, a vítima foi liberada com a promessa de que as providências cabíveis serão tomadas, com engajamento de forte força policial.

A manhã se encerrava e, ao contrário da paciência, a fome do escrivão o preenchia por completo. O funcionário público lembrou da marmita trazida. Restos da pizza do dia anterior, nada mais perfeito. Imprimiu o boletim devidamente registrado e o acondicionou na base da volumosa pilha logo depois da ocorrência sobre um sujeito que perdeu o tempo, um povo sem esperança e um vira-lata perdido.

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