Eram gritos com cheiro de borracha queimada que só depois descobri ser sangue e pelo queimado.
Naquele mar de sensações limitado por quatro paredes de papelão só me restava ganir. Outros iguais a mim eram agarrados por mãos rápidas, subiam e desciam sem vida; alguns despareciam, outros ressurgiam diferentes, sem um ou dois olhos, carbonizados. Meu focinho era devassado por peculiares aromas.
No meu leito de morte fui levado às alturas sem tempo de me aprontar para a desgraça reservada, tremi ao toque das mãos de palmas grossas. Houve um sussurro seguido de um afago.
Em pouco tempo levei um jato d´água na cara e uma barra de sabão contra meu corpo desengonçado. Renascido de um casulo de desespero, sangue e merda, me revelei um cachorro caramelo.
Deixei de grunhir para latir. O dono das mãos possuía um focinho curto sem pelos, couro vincado, poucos dentes, pelagem branca. Era bípede, mas andava torto, quase corcunda. Com ele algumas versões miniaturas suas saltitavam pelo quintal enlameado sorrindo e cantando para mim, até serem conduzidas por versões intermediárias de poucas expressões, ares de predadores.
“Que merda de ideia de pegar um vira-lata, hein?”.
Não entendi o som, só me restou chacoalhar expulsando-os com a água de meu pelo.
Parti para o reconhecimento de terreno, algo muito além da caixa de papel que minha memória recém-nascida gravara, algo grandioso, um sonho limitado por um portão enferrujado por onde do outro lado vazava uma movimentada rua.
Recolhido aos meus aposentos, uma camiseta de algum político dos anos noventa boa o bastante para me aninhar, ao lado uma máquina de lavar roupas cujos grunhidos me ninariam pelas madrugadas.
Enquanto eu crescia, o senhor das mãos encolhia. Combinávamos nas alturas e gestos. Se o dia começava, era hora dos miolos de pão levemente amanteigados e um punhado de pedras porosas vindas de um saco com a imagem de um pequenino cão enfeitado.
Na sequência, abandonávamos o lar atravessando o gradeado enferrujado e por ruas tortas e rampas íngremes chegávamos a um recinto forrados de garrafas e recheados de outros senhores iguais ao meu, cada um com suas pelagens brancas e com copos de cheio.
“Aeh, bando de botequeiros!”
Ele berrava para a alegria geral.
No meu canto, aos seus pés, eu era agradado por porções de torresmos, paçoquinha, amendoim e um tal de “birô birô”.
A cada comemoração, tim-tim ou brinde para o santo, eu recebia contra meu pelo ou contra o chão doses dos líquidos perfumados que com o tempo ganhavam nomes. A cada gole em forma de lambida reconheci as nuances. Cerveja, conhaque ou cachaça. Aguadas, coloridas ou suco de milho.
Certo dia ganhei uma porção de pasteis gordurosos após expulsar uma ratazana que se escondia no balcão.
Entre os goles e porções, com o tempo os frequentadores minguaram, desaparecendo pouco a pouco. As doses também diminuíram até sobrar apenas o meu senhor do lado de fora do balcão.
Paramos de ir para lá.
Em casa a rádio com moda de viola só era interrompida pelas visitas. As miniaturas não estavam tão pequenas, da mesma forma que minha pelagem era mais branca que caramelo.
Meu senhor era cercado pelos predadores. Gritavam sons indecifráveis para mim e também para ele, tanto que mal respondia, apenas meneava a cabeça de um lado para o outro.
Predadores rosnavam. Miravam o corcunda. Não o queriam ali.
Os dias se iniciavam cada vez mais tarde, já não havia pão. As pedras porosas faltavam, e minha cama agora era as cobertas junto aos chinelos que pouco eram utilizados.
Suas mãos se perdiam tremendo no ar sem me encontrar para afagos, então eu me embrenhava por seus braços sentindo o cheiro de sua tez com pouca cor. No calor de nossos corpos mornos eu o vi sorrir e, em meio aos sussurros enigmáticos destinados a mim, dormimos.
Até os sussurros acabarem.
O amontoado de moscas trouxe os predadores de volta. Retiraram meu senhor, inchado e sem as rugas, em silêncio como se seus apetites estivessem satisfeitos.
Tudo foi desaparecendo. Mobílias, a máquina de lavar, o rádio, até a grade enferrujada ser aberta para mim por um predador na companhia de uma miniatura que trazia no colo um cão parecido com aquele do saco de pedras porosas, um ser tão pequeno, mimoso, delicado, um bibelô.
Os olhos a mim dirigidos gritavam. Não me queriam ali. Queriam minha ausência como foi a do meu senhor. Queriam a morte.
Segui pelas ruas que não me destinavam para o boteco. Caminhei até me enrolar em minha própria solidão, mergulhando em sonhos dos tempos que se foram.
Sonhos e fome.
Os olhares dos que passavam diante de mim eram iguais. Olhar de morte. Predadores. Não me queriam perto dos postes, nas esquinas, na frente das casas, na calçada, na rua, ou onde era visto.
O casulo do desespero voltou a me envolver, desta vez em silêncio. Se mãos viessem abreviá-lo da pior forma possível, não estranharia, não fugiria.
Então uma mão me tocou.
Seus dedos mais escuros que meu tom amarronzado desbotado eram de um bípede de couraça magra e com muitos dentes montando um sorriso. Na sua companhia outro cão caramelo assim como eu me aguardava em uma carriola.
O senhor vestia uma camiseta parecida com minha antiga cama e tinha um aroma acolhedor.
Predadores olharam para ele da mesma forma. Desejos de morte cruzando os semáforos. Desejos concretizados em noites frias com ameaças, correria e medo.
Éramos vítimas.
E assim me uni a eles.
E assim seguimos, mortos em vida.
PS: Todos os cães da foto estão disponíveis para adoção no GIPAMA (busque nas redes sociais) ;)
Comments