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Maldito humor (ou a consciência de um escritor de terror tentando convencê-lo a não fazer graça)

Flávio Karras

Atenha-se ao sangue, à ambientação.

Aquela luz ali, que tal dar uma bruxuleada? Apagar de repente ou estourar. Vamos incluir sussurros no fundo do corredor ou na esquina ainda não virada. Incluir a sombra de uma silhueta ameaçadora, o pior dos pesadelos, da pessoa indesejada, do monstro amedrontador.

Acerte, mire bem mirado na repulsa, naquela sensação gostosinha do confortavelmente desconfortável, um pavor seguro que nos abraça no tempo reservado e conquistado para e pela leitura.

Revolva os medos mais íntimos e ainda assim expostos a todos.

Isso, continue. Ouça sua consciência, querido escritor.

Vamos, continue digitando, não pare.

Construiu os personagens, lembrou-se que ninguém é santo e não há maldade absoluta.

Vamos, continue.

Olhe lá, um bolor no chão. O que pode escrever sobre ele?

Não, não é uma lembrança de um pedaço de bolo de alguma festa de aniversário. Eu disse bolor. Pare de incluir cores! Estamos no cinza do medo e da solidão. Não, não houve “parabéns para você” e não havia uma tia cortando o bolo e distribuindo pedaços irregulares para os convidados indesejados.

Pare com isso, volte para as sombras.

Alguém girou o disco da Xuxa ao contrário? É sério que você quer escrever sobre isso?

O demônio foi invocado, um vulto do “meu cãozinho Xuxo”!

Pare! Vamos para as sombras, para traumas de infância e plot twist! Todos adoram isso!

Ah, a assombração foi encarnar no papagaio moribundo lá na gaiola pendurada na garagem. Jesus, você não me ajuda.

“Curupaco é o caralho”.

Vamos encerrar por aqui, pare de escrever. Delete. Vamos começar de novo. Sabemos como isso vai prosseguir. Não será uma história de terror ou horror, mas de humor sacana com critiquinhas petulantes. Algo que só você acha graça durante o banho. Da última vez você misturou tentáculos e uma galinha, e não deu em nada.Simplesmente pare.

“Curupaco é o caralho”. A família abandonou os arredores da mesa de doces para seguir à garagem onde a ave destruía a velha gaiola à bicada. Movidos pelo início de confusão e calor humano, dois tios bêbados — um bolsominion e o outro lulista — se engalfinharam. Uma criança remelenta começou a chorar, outra — igualmente remelenta — saiu correndo com todos os brigadeiros escondidos por baixo da camiseta.

“Curupaco é o caralho”. Pare enquanto ainda dá tempo, coloque um slasher no meio dessa história besta.

Vermelhos de ódio, os olhos do papagaio miraram o pai do aniversariante. O sujeito sabia que aquele dia ia chegar por ter enjaulado uma ave tão bonita, feita para voar , mas resumida a um gravador-repetidor sem pilha.

“Curupaco”.

Bum!

Manteve-se em pé o corpo enquanto a cabeça ia pelos ares e, ainda assim, a mão segurava uma latinha de Brahma.

Gritaram de um lado para o outro a parentada coberta por serpentinas de miolos caindo dos céus. A cada “curupaco” um explodia. O tio do pavê, a tia do zap, o sobrinho incel com raiva de mulher, a esposa traída, o marido traidor, a prima nerd, o sobrinho concurseiro destinado a ser juiz, a vegana chata, o ateu convencido, todas as crianças também, o papagaio era democrático.

“Curupaco, filhos da puta!”.

Ah, violência gratuita com indiretas. Patético.

Transformada, a briga política dos tios se transformou em uma felação 69 gay, enquanto isso na cozinha, isolada e tristonha, a tia lambeu a faca do bolo no aguardo do retorno do pessoal à mesa e, na sala, o fracassado aniversariante quarentão concluiu tristemente ao retirar o disco da Rainha dos baixinhos da vitrola.

— Esse lance de girar o disco ao contrário era só uma lenda.


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