top of page
  • Flávio Karras

Mais um vício para a coleção

Tenho um amigo carrancudo que mantém o semblante de ferradura para baixo durante todo o dia. Esbraveja mal humor, sabe más notícias de cor, quase um urubu para as esperanças de quem se aproxima. Se ouve uma piada, sorri rosnando. Sua rabugice perdura do café da manhã até o cair da noite. Isso acontece há tempos, da infância de resmungos, para a adolescência com hormônios e xingamentos, até a fase adulta onde um fio de cabelo branco vale por sete reclamações. Apesar disso, a querida leitora não deve julgá-lo como uma má pessoa, longe disso, estamos apenas diante de um viciado.


— Viciado? Álcool, cigarrinho do capeta, carreirinha de neve empolgante?


Não, muito pior. Segure o suspense, e agora imagine um advogado criminalista com toda aquela postura sisuda necessária aos dias de trabalho, atendimento a clientes, a análise de ocorrências sanguinolentas. O mesmo rosto a transmitir seriedade necessária do operador das leis, guarda uma tristeza pulsante. Uma agonia decorrente da situação da esposa, acamada, em coma, sem perspectiva de retornar ao mundo dos sentidos. Uma falta de perspectiva e desamparo que culmina em um resultado peculiar: prazer.


Esta é a premissa do filme grego Oiktos (Piedade ou Pena em tradução livre), escrito e dirigido por Babis Makridis, lançado em 2018, ainda indisponível nos streamings, mas localizável nos meandros da internet.


O protagonista, o advogado em questão, se vê em uma rotina repleta de comiseração, constantes desejos de melhoras, tapinhas nos ombros, piedade e dó que passam a viciá-lo a ponto do despertar da esposa semi-morta o desestabilizar.


E nesta crise de abstinência por tristeza e angústia o filme se desenrola por cerca de uma hora e meia. A narrativa lenta, ainda assim impactante sem precisar apelar para câmera lenta ou branco e preto.


Questionamos a tosquice da conduta do personagem principal enquanto, sem perceber ou percebendo sem admitir, tememos o fim da bateria do celular, a ausência de reações à postagem interessantíssima feita com tanto carinho, o meme não compartilhado, a mensagem vista e não respondida, e o que estaria acontecendo agora enquanto presos a estas linhas, seria o caso de dar um “F5” no site de notícias? Ufa!


Do vício da tristeza no filme para o nosso vício já familiarizado, tratado com todo carinho aninhado nas crises de ansiedade, quentinho, gostosinho de tão ruim.


Qual o seu vício? Dentre todos que possuo — paro um momento de digitar para ver o vasto índice impresso no mente — a procrastinação é um deles. Se soubesse quantas vezes interrompi os parágrafos para cortar as unhas já quase inexistentes, das vezes que salvei o documento para fazer um café, depois um pão, bolo, refogado, almoço, mais café e comendo pipoca com queijo ralado durante o capítulo final de uma série maratonada, sinto a leve lembrança de uma pendência na encarnação passada. Deixo para depois de amanhã o que pode ser feito amanhã. Paro para começar, mas para parar é necessário começar, e assim, em um ciclo se retroalimentando, em uma centopeia humana de manias eu vivo.


Do amigo carrancudo consegui arrancar uma confissão na mesa de bar — muitas vezes o álcool é mais forte que um divã e pressão freudiana —. Disse que a máscara da rabugice foi grudada por necessidade, problemas familiares e essas coisas, que com força de SuperBonder colou a máscara antes mero item de defesa.


A visão deformada através do fundo do copo de emoções traz o vício em forma de pó, líquido, mental ou singelezas que esvaziam e preenchem o dia-a-dia.


E aí, já teve tempo para pensar, qual é o seu vício?

4 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page