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Flávio Karras

Insônia


Foi-se o tempo quando romantizava a insônia. Ainda criança, no meio da madrugada, antes de virar para o outro lado da cama, via a luz da cozinha vazando por baixo da porta do quarto. Meu pai relia o jornal do dia anterior antes de o entregador lançar, literalmente, a edição do dia. Que período produtivo, que maravilha ficar acordado enquanto todos perdiam tempo cochilando. O silêncio como testemunha, que delícia. Que ilusão. Agora me pego em uma cama pequena ou grande demais escorrendo pelas beiradas do colchão de molas macio ou duro demais com um pensamento vivo ou morto demais. Tudo parece incerto quando o sono vai embora. A insônia romantizada perdeu o sentido. É trágica. Caminho pela casa ouvindo seus gemidos, seus estalos de hibernação. Os armários emitem sons peculiares. Minhas passadas ressoam estalos dos meus joelhos. A geladeira grunhe como um estômago vazio. Nela nada de bom, apenas a luz que me faz querer voltar para as trevas das cobertas. Tento convidar o sono ao ver as notícias no celular. Era como se gritasse para um pássaro assustado. Fico ainda mais desperto com as tragédias do cotidiano. Desligo, pois basta o café para me dar azia no início do dia. Tento escrever algo, na cabeça vazia ecoam os latidos dos cães ao final da rua e alarmes ainda mais distantes. Qual seria o conteúdo do discurso canino? Seria um relatório da estupidez humana que flagraram no decorrer das últimas vinte e quatro horas? E o alarme? Um carro arrombado, um vento mais forte, uma bateria agonizando, uma casa violada, uma família morta? Quais histórias estou perdendo por não conseguir imaginar nada além? Nada além de querer dormir. Tento outras coisas mais. Até exercícios. Abdominais, flexões, tudo perde o sentido. Cansado de cansar, resolvo aguardar o sono deitado. Volto para a cama, coberto por grossas mantas, fecho e aperto bem os olhos. E o despertador toca.

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