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Flávio Karras

Diário de bordo

(devido à permanência do coronga em nossas vidas, a narrativa ficou datada, envelheceu mal, ainda assim é divertida) 15 de março de 2020 Tudo organizado em uma caixa. Anotações, calendário, canetas coloridas, notebook em um amontoado com meu bonequinho do Elvis Presley reinando no topo da bagunça.

Despedi-me dos colegas de trabalho, mas sem cumprimentos ou abraços. Alguns me retornavam golpes de vista, outros com até logo e até pesarosos adeus. Aliviado por este período de home office forçado, poderei me conhecer melhor. Meditarei, ficarei mais calmo, controlarei a ansiedade, o stress e, principalmente, ficarei longe do bando de inconvenientes, insuportáveis e incompetentes colegas de serviço. Livre destas pragas! No elevador com mais três funcionários de outros setores evitei cantarolar, talvez eles não estivessem no clima. Na minha companhia uma mulher parecia roer as unhas até os ossos, outro sujeito estava com ares fúnebres. O caminho de volta foi rápido, todos pareciam tomados pela pressa. Cheguei ao meu apartamento em poucos instantes. Um ponto distante nas alturas do trigésimo andar. Ficar isolado perto das nuvens, quase um céu particular, um ninho de paz e quietude. Foi só abrir a porta do apartamento para ser bem recebido pelos meus filhos-caninos, Alfredo e Afonso, dois pequenos vira-latas gêmeos resultantes de alguma aventura de pinchers, dálmatas e talvez iguanas. Ambos bicolores com uma linha reta que dividia a pelagem ao meio. Afonso tinha o lado esquerdo do corpo da cor preta e branca do lado direito, com Alfredo era o contrário. Acostumado com minha nova e adorável equipe de trabalho, reorganizei minha mesa de trabalho na cozinha. Nada melhor que trabalhar com aromas de temperos e com a geladeira ao alcance. Meu desempenho será primoroso. Sou dono do meu tempo e espaço. Começo a trabalhar ao som de Can't Help Falling In Love. 17 de março de 2020 Adotei algumas dicas para manter a disciplina: acordar cedo, preparar um bom café, tomar banho e trocar de roupa. Esta última parte é vital para a mente perceber o momento de trabalho e ajudar na concentração.Meus cachorros estão contentes, pedem atenção e eu os agrado com a maior satisfação do mundo. Ontem mesmo brincamos no sofá da sala e depois eles foram dormir no chão gelado da cozinha, perto dos meus pés enquanto trabalhava. Foram exatos trinta minutos de “confraternização”, muito melhores que as tenebrosas horas do cafezinho com colegas de trabalho.Vesti uma camisa social. Separei uma calça bem passada e até sapatos para iniciar o expediente caseiro. Ao lado do notebook um copo d´água e um cronometro para não esquecer de levantar para me esticar um pouco. Plano perfeito. Rendimento perfeito, funcionário modelo e promoção à vista.O alarme de final de jornada tocou quando eu olhava a foto de minha ex. Ao término do dia rendi um total de quatro bananas comidas e três pacotes de bolacha recheada. Fiquei tentado a beber uma das cervejas reservadas para os finais de semana. Torço pelo fim da pandemia, mas não do teletrabalho. Não sinto a menor saudade do ambiente de trabalho, muitas picuinhas e bobagens. 21 de março de 2020 Teremos a primeira conferência via vídeo. É uma pena ter que reencontrar aquelas cara azedas mesmo que aprisionadas na tela do notebook. Vesti aquela mesma camisa social e uma bermuda. A calça virou cabo de guerra dos meus cães enquanto eu estava no banho. Eles são uma graça. A colmeia de rostos se abriu rápido demais na tela do computador. Como visitantes indesejados encontro meus colegas de bancada, guerreiros da criação, invadindo a mesa da cozinha. E para piorar trazem um pouco de suas intimidades. Vejo uma colega berrando com os filhos – sequer eu sabia que era mãe – outro fez questão de ajustar a câmera e posicioná-la para apreciarmos uma vasta coleção de bonequinhos de super heróis cabeçudos – infância tardia –, outro se atrasa e nos brinda com severas assoadas de nariz – nojento –. Cobraram o projeto. Não neguei o atraso. Mas vai acontecer, não tem como não acontecer! Como podem esperar uma propaganda de um celular com “a inovadora funcionalidade de servir como cortador de unha” de forma imediata? O diretor de arte e seus bonequinhos continuaram e me encarar na companhia da revisora e seus filhos mal criados, e o arte-finalista com seu resfriado. “Deixem este redator pensar!” Pensei, mas não gritei. Evolução do celular! Depois de tela que dobra, milhares de câmeras frontais, laterais, anais, agora corta unhas! Unhas. Minhas unhas não estão um padrão de limpeza. Algo escuro por baixo delas. É chocolate. A reunião aconteceu sem maiores problemas entre sorrisos azedos e broncas disfarçadas. Todos pareciam represar certo nervosismo. 23 de março de 2020 Comecei a fazer receitas novas. Não sabia que era possível fazer suco com casca de alimentos. Alguém tem ideia do quão é nutritiva a casca da banana? Os talos das verduras são de uma riqueza sem precedentes. A propósito, a geladeira e a despensa estão ficando vazias. Afonso está latindo bastante, por iniciativa própria aprendeu a pegar a coleira para caminharmos. Ao mesmo tempo, Alfredo está latindo para a janela. Querem sair. A cerveja também está acabando. Lembrei da minha ex novamente. Por que acabamos? Ah, sim. “Amores líquidos”, ela disse. Preciso comprar mais cerveja. 27 de março de 2020 Sonhei que estava sozinho no meio da rua. Olhava de um lado para o outro tentando reconhecer o local, mas tudo se resumia a edifícios enfileirados tão altos que tapavam o céu. As construções margeavam uma linha de asfalto sem fim. Alguns postes na calçada começaram a se iluminar. Um brilho fraco, outro médio, mais um forte e, por fim, contínuo. Depois se apagava novamente para recomeçar uma espécie de contagem regressiva. Quando o asfalto começou a deslizar para trás, me obrigando a caminhar. Só então percebo estar descalço, mas não é só isso, não tenho camiseta, bermuda, nem nada, apenas nu correndo quando atrás de mim um “nhac” metálico revelou um gigante cortador de unha. “Nhac, nhac” comia o asfalto e resvalava nos meus calcanhares. Acordei suado. Ao sair do quarto percebi uma das almofadas do sofá, presente de minha mãe, em frangalhos. Só assim para lembrar de ligar para ela. Resumo da ligação: ela não desgruda as vistas dos jornais sensacionalistas e está pensando seriamente em amarrar meu pai ao pé da mesa para ele deixar de sair à rua. Voltando à almofada, mesmo com bronca, nem Alfredo, nem Afonso abaixaram as orelhas se auto denunciando, pelo contrário, continuaram a me encarar e só desviavam o olhar para janela. Debruço na janela, aos meus pés pessoas diminutas como formigas caminhavam pela rua. Pequenos pontinhos pretos. À minha frente cresciam outros prédios tão isolados nas alturas quanto o meu, mas não chegavam a ser altos igual ao pesadelo. Nada de anormal. Perguntei à dupla o motivo de tanto interesse. Claro, não responderam. Olhei novamente até que um ponto branco em uma afastada janela do prédio a frente pareceu se manifestar. Era uma calopsita na varanda. O animal todo pomposo em uma haste, rodeado de flores e compridas samambaias. Nada demais. Hoje o trabalho não rendeu, descobri alguns sites pornôs e o dia passou rápido demais. 01 de abril de 2020 Resolvi ir ao mercado. Uma saidinha rápida não mataria ninguém, nem causaria uma hecatombe. As únicas máscaras que possuo em casa são do penúltimo carnaval: macaco com a língua de fora e uma odalisca. Lembro de ter ficado ótimo como odalisca. Naquele tempo ainda fazia academia. Imagine só uma versão de Jeanne é um Gênio com traços de whey protein acabando com os rins, pelo menos meus bíceps eram estufados e desenvolvidos. O macaco era minha ex. Lembro-me dela saltitando correndo em meio aos foliões. Sempre afoita para deixar nossas mãos ocupadas com copos de cerveja. Ela desaparecia e voltava com os copos. Sequer precisava de dinheiro. A obediente odalisca sempre esperava seu macaco. Odeio Bauman. Sem máscara, adaptei um pano de prato na altura do nariz e como um ladrão dos filmes de cowboy e saí pelo corredor deserto até alcançar o elevador. O cubículo trazia alguns avisos do que fazer e não fazer com as mãos – para este segundo a listagem era maior – além de novas regras do condomínio. Confesso que estava um tanto desinformado. Não tinha acesso aos canais abertos, e os sites de notícia me enojavam com tanta propaganda mal feita. Vivia à base de streaming com suas novelas travestidas de séries. Olhei o meu reflexo nas paredes espelhadas. Parecia cansado com olheiras alcançando o fundo da cabeça. Minha imagem se perdia em ecos infinitos no reflexo dos reflexos. De saída pressionei a embalagem de álcool em gel na mesa do porteiro. Mãos fresquinhas e desinfetadas, prontas para uma pequena viagem fora da quarentena. Na calçada em frente ao prédio encontrei o pipoqueiro trabalhando normalmente como se nada tivesse acontecido. Sem máscara, sem álcool em gel e com mãos livres. Sentado em um banquinho de madeira, olhava para o horizonte, ignorando as pipocas murchas represadas no vidro de seu carrinho. A panela ao seu lado parecia fria, pois descansava o braço nela. Trocamos olhares e nos cumprimentamos com vogais, não sabíamos o nome um do outro, mas nos conhecíamos. Sabia que ele era um datilógrafo aposentado que resolveu virar pipoqueiro para ter uma boa desculpa para não ficar em casa com seus estúpidos parentes. Caminhando pela rua não trombei com um cenário apocalíptico de carros pegando fogo e duelo armados em busca de mantimentos. Encontrei o mesmo mercadinho com preços superfaturados onde costumava comprar, mas com apenas uma diferença: demarcaram uma fila pela calçada. Assim, fiquei posto em um dos “X” amarelos com distâncias segura entre os clientes, tendo a minha frente um sujeito grande e gordo com uma diminuta máscara de enfermeiro e atrás de mim uma mulher magra, sem máscara e de viva voz tagarela. Em pouco tempo já estava dentro do mercado. Eu e mais cinco pessoas onde caberiam folgadamente trinta e poucas. Nadávamos no mar das gondolas com preços ainda mais superfaturados. O sujeito gordo apareceu ao meu lado, suas mãos enluvadas pegava as frutas com destreza e pressa. Em seu rosto, além da máscara, usava óculos emborrachado, uma espécie de visor. Achei graça, ele parecia pronto para um desastre nuclear. “Vírus? Que piada”, ouvi gargalhar a mulher magra com roupas coloridas em verde e amarelo na direção de um funcionário do açougue que, por sua vez, tentava se defender dos perdigotos invisíveis por trás do vidro das carnes. Ao meu redor outras pessoas plastificadas. Máscara e cheiro de álcool. E eu ali como um cowboy de chinelo de dedos. “Chineses, sim. Os chineses!”, a mesma cliente gritava agora para uma moça que se defendia com um abacaxi na altura do rosto. Na fila, o sujeito de largas proporções ressurgiu à minha frente. Pagou em cartão envolto em um plástico. A funcionária do caixa pegou a maquinha de cartão e borrifou um desinfetante no pequeno teclado, então o homenzarrão enfiou o cartão esterilizado e digitou a senha com seu dedo plastificado. A caixa borrifou mais uma vez após o uso. A pedido, também borrifou no cartão do cliente. Na minha vez, com frutas, pratos prontos congelados, sorvete e cerveja ensacados; recebi o troco em dinheiro com notas amarronzadas em minhas mãos desnudas. As recebi com dose de nojo inédito e segui de volta para casa, ouvindo às minhas costas aquela cliente ainda gritando contra o exagero de todos ali. De volta ao lar, sou recebido por uma visita emoldurada na janela da sala, a ave do outro lado do condomínio. A calopsita me encarou com suas buchechas avermelhadas. Não me preocupei em afastá-la e meus cachorros parecem não se importa com a presença do pássaro, pelo contrário, parecem respeitá-lo, quietinhos aos seus pés. Ela me olhou, eu a olhei. Peguei o celular, ela me olhou. Tentado a me atualizar sobre o que ocorria de verdade, abro um aplicativo de mensagens. Muitas notificações represadas, ignorei as do trabalho e cai no grupo dos parentes. A calopsita continuava a me olhar. Vejo mensagens com fotos tão coloridas compatíveis com os gritos da tagarela do mercado. Sorri de satisfação enquanto a calopsita levanta voo de volta para seu poleiro. 04 de abril de 2020 Quem diria, hein? Tudo obra dos chineses comunistas para dominar o mundo com itens baratinhos e yakissoba! Sem contar com o lobby da indústria farmacêutica ao lucrar caminhões de dinheiro com a venda de máscaras e álcool em gel. É sabido que eles têm a cura do câncer, mas não querem divulgar para não perder clientes, da mesma forma diante deste novo vírus. Desde a ida ao mercado não larguei do celular, quase não continuei este diário. Comecei a trocar longas mensagens com meu tio, um militar aposentado. Seu conhecimento sobre conspirações é invejável. Em pouco tempo fui adicionado a um grupo de Whatsapp repleto de ideias libertadoras. Atônito com tantas informações sonegadas por uma mídia golpista e manipuladora. Tudo é uma farsa, tudo! Algumas vozes mais empolgadas sugeriram fazer uma comitiva pela cidade alertando para as reais causas. Quem sabe assim não arrumo uma nova namorada? Uma moça com pensamentos compatíveis. Seria ótimo, pois sinto que esqueci de vez a minha ex. Agora sei dos números falsos, dos caixões enterrados vazios, os vídeos montados, os hospitais vazios, da manipulação de atestado de óbitos! Tudo é tão claro, a famigerada disputa política encobertando a realidade. Ligo para meus pais e conto das boas novas. Ainda que constrangida, minha mãe promete repensar e começar a sair de casa. Como alguém maduro pode se deixar manipular? Digo para se libertar do medo e viver normalmente. De que lado estaria minha ex? Do lado verde-amarelo patriótico ou dos plastificados iludidos? 09 de abril de 2020 Tornei-me um dos integrantes mais participativos do grupo. Criei jingles contra a quarentena, alguns vídeos curtos para facilitar a divulgação e fotos impactantes. Afonso e Alfredo viraram estrelas das redes sociais contra essa besteira de quarentena. Ainda assim encontrei certo preconceito, algumas pessoas não estavam prontas e insistem com esta farsa. Tive outra reunião de trabalho. Por que se importavam com a propaganda quando a soberania nacional está em jogo? Avisei os colegas de trabalho, estúpidos cabeça ocas, sobre o que acontecia, mas pareceram incomodados. Quem se importa com um celular que corta unha? A reunião foi encerrada justamente quando eu comprovava a participação dos illuminatis na contaminação. Patéticos! Voltei às minhas divulgações, intercalando-as com os sites pornôs. Minha mãe ligou depois de algumas horas, conversamos descontraidamente. Meu pai tinha saído com uns amigos para uma pescaria. Folgo em saber que minha família é iluminada. Novamente terei que ir ao mercado. Não sei como Alfredo e Afonso alcançaram o freezer. Só sei que encontrei ambos lambendo seus respectivos picolés de carne crua. Encontrei algumas penas na porta da geladeira. Estranho. 10 de abril de 2020 Desta vez não me preocupei em ir de cowboy, não faria parte deste teatro. Era chegada a hora de servir de exemplo de coragem e determinação. Vesti uma bela camiseta amarela e segui para comprar a despesa para a semana. No meio do caminho do elevador, entrou um jovem de máscara. Não o reconheço, ele também, não. Apenas lançou um olhar assustado ao se deparar comigo. Ainda assim fiz questão de cumprimentá-lo com um sonoro “Bom dia, como vai você querido vizinho?” em alto e bom som, inspirando e espirando o máximo do ar que nos rodeava. Ele não respondeu, pareceu fungar. Não temi. Sei da farsa e do medo abobado. A porta do elevador se abriu e o rapaz fugiu a passos largos no mesmo instante em que me deparei com luzes coloridas tingindo a entrada do prédio. Azul e vermelho rodopiavam pelas paredes. Havia uma ambulância ao fim da escadaria. Pipocas estalavam na panela enquanto o zíper era fechado. A tempo consegui ver seu rosto com gotículas de sangue no canto da boca. Ou seria pipoca doce de groselha? Minhas pernas fraquejaram pelos degraus. De um lado a ambulância com dois socorristas de braços cruzados olhando para mim, do outro o furgão do necrotério com um funcionário acabando de ensacar o pipoqueiro. Talvez, talvez fosse um ataque cardíaco. Isso! Ele não foi morto pelo vírus comunista. Caminhei até o mercado tentando manter a calma e o coração dentro do peito. “Fechado por luto” dizia o sulfite colado na entrada do mercadinho. Lembrei de um açougue ali próximo que poderia servir. As ruas quase desertas. Poucos mascarados e todos com olhares condenatórios. Pude ver janelas se fechando a minha passagem. O que eu tenho de errado se sou livre? Todo mundo morre, oras! Todo mundo morre. Morre. O açougue estava fechado com outro sulfite, que desta vez não trazia nota fúnebre, “Em atendimento à quarentena e a fim de preservarmos a saúde de nossos empregados e dos estimados clientes, estamos trabalhando apenas com delivery”. Preservar saúde. Alguém me viu olhando para o estabelecimento com o portão fechado e se aproximou sem que eu percebesse. _Malditos vermelhos – disse a voz rouca pontuada por uma tosse comprida e uma longa busca por oxigênio na sequência. Virei me para responder. Era a mulher tagarela do mercado vestindo uma desbotada camisa dourada com manchas de não sei o que em sua gola. Sua tez era pesarosa e raivosa. Me reconhecera como seu igual, se dando à liberdade de conversar. Senti gotículas de sua boca na minha, mergulhando na minha saliva e descendo feliz como em um tobogã pelas vias respiratórias. Meu pulmão, pobre pulmão! Meu cérebro deu um estalo. Um reset. E como um veado diante de um leão escancarando presas corro de volta para casa. Não. Não estava correndo, estava fugindo! O furgão do necrotério ainda na frente do prédio estaria esperando por mim? Não, ainda não. Ainda não. Deslizei para dentro do prédio trazendo o álcool da entrada à tira colo. Borrifei o gel em minhas mãos, das mãos besuntei meu rosto, as orelhas, a língua e os olhos. Ah, meus olhos queimaram, mas não apagavam a imagem do desespero na mente. Entro no elevador e ele demora a chegar. Suba, suba, logo! A contagem crescente dos andares era lenta. Ouço um bip a cada mudança de números luminosos. Bip...bip...bip... Meu coração não vai suportar. Corona afeta o coração? Cheguei ao apartamento, acertei a chave de primeira. Alcancei o celular no braço do sofá. A calopsita ressurgiu na janela. No Whatsapp a foto de perfil de meu tio está preta. Liguei para minha mãe. Ela atendeu tossindo. “Cadê o meu pai?”, gritei às margens do desespero. “Ele deu uma passadinha no posto de saúde, está com falta de ar. Por quê?” Não respondi, porque desmaiei. 14 de abril de 2020 Tomei o caminho ignorado. Troquei as teses dos cantos mais sombrios da internet pelos dados médicos, li estatísticas. Oh, a estatística. A métrica com mortos. O obituário registrado ao vivo. 24 horas de mortes. A contagem ia mais rápido que a respiração. Inúmeros relatos, a OMS, a escalada pelo mundo. Sou chamado de “comunista” pelos grupos de Whatsapp. Saio de todos. Meu tio não mais responde. Leio mais. Tomei não sei quantos banhos hoje. Também lavei Alfredo e Afonso. Os três juntos no boxe. Estamos limpos com cheiro de sabonete de odor de rosas. Lavei mais de uma vez todas minhas roupas. Lavei também a louça e as frutas. Tomate é fruta e eu não sabia. Lavei com detergente a embalagem de detergente. Encontrei alguns produtos vencidos, lavei-os antes de jogar no saco de lixo. O saco estava limpo? Na dúvida, lavei-o também. Não tinha luvas, então envolvi meus dedos com filme plástico. Depois as mãos, os braços. Estou plastificado até os ombros. Fiz encomendas pelo delivery. Vou estourar a fatura do cartão. Não tem problema, darei um jeito. Mas e se for demitido? Meus pais me emprestariam dinheiro? Voltaria a morar com eles? E quem não tem emprego, e quem não tem para onde voltar? Caos. Meus batimentos cardíacos aumentam. Preciso deitar, dormir. 18 de abril de 2020 Meu pai escolheu o pior período para descobrir que tinha asma e minha mãe tinha um inocente pigarro. Alfredo e Afonso estão cansados de mim, perderam paciência e não suportam minhas brincadeiras. Tentei marcar uma nova reunião no trabalho, mas houve expediente. Nossos contratos foram suspensos. O celular cortador de unha poderia esperar. Contudo...contudo...poderíamos conversar. Ligar as câmeras apenas para nos vermos. O sorriso da minha amiga com seus adoráveis filhos comunicativos. A coleção fruto do bom gosto e dedicação do amigo. Será que o outro amigo que está resfriado melhorou? Amigos... No celular me deparo com uma foto antiga. Por que a não deletei? Minha ex sorria com a taça de vinho em seus lábios. Corava fácil. Ao seu lado, eu tocava a pele de seu pescoço convidativo o bastante para beijá-lo por uma semana. Aquele foi o último sorriso entre nós. No dia seguinte sua irmã gêmea faleceu. Um acidente de moto. A maquiagem disfarçava os hematomas pelo corpo no caixão. Que velório perturbador. Minha ex não saia do lado da morta, parecia o espírito desencarnado de tão iguais. Onde a moto encerrou a vida da irmã, eu me tornara o obstáculo para a dela. A angústia da liberdade com a certeza da morte. “Precisamos conhecer outras pessoas”. “A vida passa rápido”. “A sociedade é líquida. Amores são líquidos”. Ah, Bauman. 20 de abril de 2020 Como um bambu, o prédio se envergava quase tocando o chão. A janela do alto do trigésimo andar ficava a centímetros da cabeça dos transeuntes. Eles olhavam para mim. Eu me cobria de plásticos. Meus cachorros voavam ao redor da minha cabeça e a calopsita gargalhava. Acordei do pesadelo tossindo. Falência pulmonar? Seriam placas de sangue? Preciso de um respirador? Quem vai me ajudar se eu adoecer? Quem segurará minha mão e falará uma palavra de consolo? Quem testemunhará meus últimos resmungos, a última lufada de ar dos meus brônquios necrosados? Não paro de tossir e sou rodeado pelo abandono. Minhas encomendas chegam. Atendo tossindo o apavorado entregador que dispensa assinatura no recibo e sai a galope pelas escadas sem ao menos esperar o elevador. Minha garganta arranha. Vou morrer, é certo. Talvez este diário sirva de testamento. Bem, se eu tivesse bens (paro de escrever para tossir) só tenho meus cachorros e eles parecem não me amar tanto. Não quero mais estar só. Não sou adepto dos aplicativos de paquera. Não quero sexo casual, não aguento mais pornografia. Quero um amor consolador nesse momento de dor. Até rimou. Minha ex. Precisava dela. Ainda tinha o número no celular. Liguei. Começou a chamar. Cada toque meu coração palpitava em expectativa. Ela atendeu chorando. Era o sinal de que retornaremos nossa vida amorosa. Oh, o amor. Ela também sentia minha falta. Somos destinados um para o outro. Perguntei sobre ela. Ela respondeu que está preocupada, pois seu marido está internado. Desliguei o telefone na hora. Tossi mais uma vez e uma pena sai de minha garganta. Calopsita filha da puta. 30 de abril de 2020 Hoje eu discuti com Afonso. Estou farto de suas intenções com o braço do sofá. Alfredo, por sua vez, mal olha na minha cara, além de urinar no meu travesseiro, parece só ter olhos para aquele maldito pássaro. Sinto que ambos não me querem aqui e de alguma forma pretendem me expulsar do apartamento. O pássaro, maldito pássaro não voltará para fazer a cabeça deles. O bicho só aparece para trazer más notícias! Fechei a janela, forrei o vidro com jornal. Deixei de ver o movimento nas ruas quando cogitei que o vírus aprenderia a voar para me pegar. A luz permaneceu acesa todo tempo. Talvez seja manhã ou final da noite...ou meio da tarde. Não sinto fome, bom sinal. Os enlatados devidamente desinfetados se acumulam nos armários. Parei de observar a contagem de mortos na televisão. A bateria do celular descarregou e não faço questão de recarregá-la. Não consigo usar o notebook. Foram tantos acessos em sites pornôs que a tela cospe vírus e trojans. Vírus... e se o Corona evoluiu e virou algo cibernético? Me pego rindo sozinho. Meus cachorros rosnam para mim. Estou ficando louco? E quem não está? Vivo na clausura para um dia poder sair. Sair para quê? O que me espera lá fora? O que faço questão de buscar? Eu buscava algo ou apenas saia? Afonso cochichou para Alfredo. Estão combinando algo, ambos me fitam. Roendo as unhas vou perdendo o juízo. Vasculho o fundo do guarda roupa como um minerador. Quero me esconder. Encontro um diário antigo repleto de desenhos com traços confusos da época da infância. Havia desenhado uma praia, mais um período traumático na minha vida. Do desenho posso sentir os raios do sol e o ar puro. Tomado pelo saudosismo de um passado remoto e pela ansiedade de um futuro sem esperança, vou perdendo a noção do tempo...e do espaço. 14 de janeiro de 1988 Areia cresceu por entre meus dedinhos dos pés. Papai fazia a torre número dois do nosso castelo. Ela era feia e a ondinha derrubou. Mamãe estava sentada na cadeira tomando uma cerveja (bebida de adultos). Duas cadeirinhas, uma caixa com cerveja e um radinho. Papai não gostava do radinho: “quero notícias!”. Mamãe preferia música: “Elvis”. Ela sempre ouvia o tal Elvis quando estava feliz. Eu não estava feliz porque meu castelinho derretia. Subimos mais uma torre. Desta vez coloquei uma conchinha no topo. Quem sabe assim seguraria. Meu pai gritou com minha mãe. O sol acertou meus olhos. A onda veio rápido e engoliu meu castelo. Fui atrás da conchinha. Corri. Havia um pessoal passeando na beirada da praia. Umas moças com roupas engraçadas corriam. Bumbum. A água molhava meus pés. A concha sabia nadar naquele marzão azulzão grandão sem fim. O vento forte entrava na minha boca. Corri mais. Água gelada. Quando peguei a conchinha, meu cabelo estava molhado. O vento estava forte e trouxe uma onda grandona que me derrubou. Água entrou na minha boca. Não vi mais o sol. Meus pés saíram do chão e dei uma cambalhota feito palhaço. Alguém me puxou e vi o sol novamente. Estava todo salgado e não me lembrava de respirar. Minha mãe gritava e não era Elvis. Meu pai não falava de políticos. Apertaram minha barriga para eu voltar, mas eu já estava ali. Fiquei com vontade de chorar, porque deixei minha conchinha escapar. 20 de dezembro de 3289 Bits e bytes! Não acredito que esta geringonça funciona. Há uma espécie espiral de plástico segurando suas finas películas esbranquiçadas com linhas traçadas: um diário! Delicadamente pressionei a ponta do objeto que a acompanhou, outrora chamado de lápis, do atrito surgiu um traço cinza na superfície branca. Incrível! Um pré-histórico e, ainda assim, belo presente. Deve ter custado um belo punhado de metros cúbicos de oxigênio! Não há conexão com redes sociais ou câmeras, nem mesmo os ultrapassados teclados ou telas de projeção. Digo o meu nome, mas não há reconhecimento por voz. Chacoalho e as telas não mudam. Posso levá-lo para qualquer lugar e não serei rastreado. Posso esconder minhas opiniões em suas linhas. Uma vida no anonimato! Fui informado que tais objetos pertenceram a uma sociedade antiga e a escrita nele presente data de um período de excepcional “reclusão”. Até aí não fico admirado, o que me espanta é saber a excepcionalidade da reclusão. Eles tinham a expectativa de sair ao ar livre sem a unidade móvel de oxigênio e sem as fraldas? Não se alimentavam através das cânulas gástricas (mas pela boca, orifício também utilizado para beijar e chupar durante a cópula)! Estupefato. Fui estudar mais e faço questão de registrar os resultados aqui como uma forma irônica de marcar em uma antiguidade sua própria história, fazendo ressurgir sua função inata. Que época barbara onde levantavam sombras contra a ciência. Alguns se valiam das palavras de religiosos (aqueles que diziam ouvir a voz de um ser invisível) e de políticos (aqueles que diziam ouvir o povo, por vezes tão invisível quanto). Seres patéticos, levados por sentimentos impuros e conclusões equivocadas. Bits e bytes! Fico contente por não participar da mesma linha evolutiva, respiro aliviado por ser um cachorro. 01 agosto de 2020 Sei da data porque estava na carta. Antes disso os dias eram pautados por cochilos. Pelas minhas contas estávamos trancafiados há mais de cem dias. Dias nas trevas. Não sei como, mas todas as lâmpadas foram destruídas. Afonso e Alfredo tomaram meu quarto, a mim sobrando o chão gelado da cozinha perto da pia onde posso capturar os restos de alimento quando eles fazem refeição. Apesar da fraqueza, meu pensamento está agitado ao reencontrar este diário, faço questão de preencher todas suas linhas, todos seus espaços, pois não sei o que está por vir. Alfredo e Afonso ficaram quase o dia todo no banho, o chuveiro sempre aberto é um convite para suas brincadeiras. Depois disso correm pela sala, cavocam o resto do sofá e rosnam para mim. Maldita calopsita os manipulou. Colocar as ideias no papel é como um desabafo, sinto um alívio no peito, ainda que o grito seja silencioso e em forma de sílabas descompassadas. Saudades de um tempo que não aproveitei, de eventos que não viverei. Me percebo um tanto sentimentalista, mas esperançoso. De repente surge uma fresta no jornal tampando a janela. O filete borrado de luz acerta meu pé. Unhas compridas e encardidas. Outra fresta surge como um golpe de esperança em meu coração e foca em meu celular. Vou carregar a bateria e ligar para meus pais, meus conhecidos, meu trabalho! Sim, voltarei a trabalhar! A luminosidade banha meu notebook. Pouco a pouco o jornal vai se abrindo e deixando a esperança voltar. Ainda agachado, ouço um caminhar apressado do lado de fora do apartamento. Há tempos não ouço outros seres vivos. Os passos se aproximam, minha porta parece ser o destino. Alguém toca a campainha. Arrepio por inteiro, começo a suar frio. Alfredo e Afonso latem. A campainha ressoa novamente com toque de pavor. A luminosidade atinge meu rosto. É a vida normal retornando. Fico de pé e, antes mesmo de me aproximar da porta, ouço os passos se afastando. Por baixo da porta um envelope timbrado. Era de algum órgão do governo. Vencemos a pandemia, tenho certeza. Pego envelope em minhas mãos e começo a abri-lo ansioso por boas notícias. Ainda que brevemente voltei minhas atenções à janela onde não vejo mais o jornal, apenas o ser maléfico se fazendo presente: a calopsita. A ave se agitava com os últimos restos do jornal em seu bico. Maldita! Retorno à carta, ela é simples e direta: “A partir de hoje começaremos a quarentena contra os Covid-20, 21 e 22”.

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