- Flávio Karras
Cadê o queixo que estava aqui?
Oivalf nunca fez a barba, ou pelo menos não se recordava da vida sem o vasto matagal.
Era como se tivesse nascido barbado. Nas fotos amareladas não se reconhecia como aquela criança de sorriso fácil, pois sua imagem era a de um lenhador.
Antes mesmo de virar modinha, antes de ser acessório dos herdeiros dos metrossexuais, antes de virar peça quase obrigatória do “kit classe média de cervejaria artesanal”.
Quero uma IPA bem lupulada, por favor.
Conservava as vastas madeixas na cara com resquícios dos primeiros fiapos.
Aos 14 anos ganhou um bigodinho de malandro, aos 20 anos conquistou um projeto de cavanhaque com escassos fios. Só na idade adulta foi premiado com uma vasta barba, como se os hormônios despertassem de uma só vez em um levante revoltoso. Ainda assim, precisava ter cuidado e noções de matemática espacial, pois do lado esquerdo do rosto nascia pelos mais grossos. Um jardineiro meticuloso e sua moita.
Nunca havia feito a barba, até então.
Lave as mãos com sabonete dos bons, não vale aquele verde-Hulk vagabundo com cheiro de hortelã.
Coloque máscara, mas com tecidos decentes. Camadas protetoras! Guarde o nariz e esta boca peluda!
Chegou em casa? Tire a roupa, mas não as deixe no chão, lave-as o quanto antes!
O que estes sapatos estão fazendo dentro da sala?
Aprenda a abrir e fechar portas com os cotovelos e, se possível, também aprenda a abrir geladeira e vidros de azeitona.
O corona chegou trazendo novas medidas como um funcionário da vigilância sanitária diante de um restaurante fedido. Ordens, medições, precauções! Se Oivalf já não era um padrão de higiene, agora se sentia o ser mais imundo do planeta.
Tomou todas as medidas, até parou de roer as unhas.
Então a contaminação do vírus passou a ganhar outra forma: ignorância.
De um lado os amarelinhos-kamikazes-ditatoriais, do outro o presidente (o P é minúsculo porque não é possível digitá-lo menor), no meio uma galera anestesiada na fila do shopping.
Estupidez que parecia voar até impregnar na barba do pobre Oivalf.
Quem não se sentiria sujo neste mar de estupidez?
Assim, em um misto de sanitarismo e agonia, a tesoura abriu suas mandíbulas afiadas. Na sequência a lâmina deslizou na pele quase inexplorada. Abriram faixas pálidas e erupções sanguinolentas do pescoço para cima e do nariz para baixo.
Quase um poodle se formava na pia quando Oivalf mirou o ser a sua frente no espelho. Suas pernas bambearam iniciando um desmaio. Amparou-se nas torneiras. Aquela imagem o fitava.
Aquilo...aquilo era ele.
Tocou o próprio rosto como se fosse novo, e era. Um novo, porém, velho rosto. Uma visita não desejada de um passado esquecido. Ganhou bochechas lisas e macias, uma mandíbula nova, mas todo o queixo pontudo sobressalente havia desaparecido. Um estranho rosto redondo.
De um motoqueiro em sua Harley Davidson, tornou-se um filhote de papagaio agoniado.
A falta de barba ressaltou um novo olhar, agora pesaroso na companhia de olheiras até então não reveladas.
Acabou a maquiagem masculina! Lá estava um velho cansado com muita pele a mostrar. A finitude se revelava, não havia disfarces!
Engoliu o choro. Tinha que se contentar, aceitar, não tinha com o que brigar.
Aproximou-se do espelho para analisar seus poros.
Quanto tempo para a barba voltar a crescer?
Como seria visto pela sociedade, amigos, família, esposa?
O que ela teria a dizer? Não era mais aquele roqueiro expelindo testosterona, havia perdido sua personalidade em meio aos cachos.
Saiu do banheiro às pressas. Tirar o curativo de uma vez era mais indolor. Foi correndo até a sua esposa.
Talvez ela apreciasse a cara lisa. Quem sabe o sexo seria mais interessante.
Cara de buceta! – o Oivalf criança gritou de sua memória.
Seus pais aprovariam? Teriam de volta o filho-criança.
Criança velha e cansada, só se for! – o Oivalf adulto e crítico respondeu.
A mulher maratonava séries na companhia do yorkshire da família. A luz da TV iluminou mais que o sorriso constrangido da amada, mas um buço brilhava na companhia do streaming logo acima do batom cereja.
O cachorrinho peludo latiu.
Oivalf, o liso, tomou seu lugar na hierarquia capilar, esguichou álcool em gel nas mãos e, em silêncio, sentou-se no sofá para esperar o corona morrer e a barba crescer.