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Flávio Karras

Além da dedada

A esposa não podia usar anticoncepcionais, os efeitos eram tenebrosos. Inchaço, dor de cabeça, espinhas, um terror. Não era simpática ao DIU e nem sabia se o diafragma ainda existia. De tão preocupado o marido usava duas camisinhas, coito interrompido e oração.


O primeiro filho veio de uma comemoração alcoolizada na época de namoro. O segundo de uma camisinha estourada. O terceiro quase chegou, mas na verdade era apenas um atraso inconveniente da maré vermelha.


O casal finalmente cogitou cortar o mal pela raiz e a ideia de uma vasectomia se tornou palatável.

Ele pesquisou, foi atrás de vídeos, documentos referendados. Estudou tanto que quase colocou um doutorado fake no currículo. Por fim, convencido que o procedimento não o deixaria eunuco, resolveu encarar.


Ir ao médico para suturar um machucado, ganhar uma cicatriz ou imobilizar um membro fraturado é motivo de orgulho, qualquer outro motivo no universo masculino boomer pode ser motivo de piada. Tirar a camisa e falar 33 era fora de cogitação. Médico só prestava para achar doença.


Neste caso, meu amigo estava evoluído, sequer fazia as tradicionais piadas sobre dedada. Anedotas sobre o Dr. Dedão ou a necessidade de comprar um CD do Wando antes de entrar no consultório do urologista devagar, devagar perderam a graça.


Tudo certo, combinadíssimo. A cirurgia aconteceria na própria clínica, sem o risco de encontrar conhecidos. Famílias com filhos pequenos têm pontos de encontro peculiares: shopping, hospitais e clínicas pediátricas. Sequer precisaria ser internado, bastariam a anestesia local, um cortinho lá e cá, e pronto. Fim da fábrica de herdeiros. O único preparo pré-cirúrgico digno de nota era tosar o Júnior, Bráulio, Campeão, Hércules, Jabilão...


E lá estava ele com as pernas abertas alçadas por perneiras metálicas e geladas, com seu frango cabisbaixo, molenga e esperando pelo pior. Que seja rápido, que o médico mal olhe para ele e faça o que tiver que ser feito.


Respirou ao som da música ambiente. Uma melodia enjoativa que conseguia ampliar sua sensação de fragilidade. O doutor ainda não voltou. Havia dado a ordem para “baixar as calças” e desapareceu. Médicos e horários são elementos distintos que nunca se encontram no universo de agonia dos pacientes.


A porta foi aberta, não era o doutô, mas a secretaria que apenas naquele instante ganhou o reparo do paciente. Como sabemos, secretarias de médicos são seres dotados de inúmeras funções, de telefonistas a enfermeiras, faxineiras, videntes, tradutoras e relações internacionais.


Bem, esta secretaria além de auxiliar no preparo do local para a cirurgia, também era uma ex-colega de turma da época do colegial do paciente.


Direto do túnel do tempo para o consultório médico. O paciente vasculhou o arquivo cerebral oitentista. Quem seria aquela colega? Qual era mesmo o nome dela? Havia a paquerado? Namoradinha? Não, não poderia ser. Havia tratado mal com alguma brincadeira infantil que pudesse causar um trauma digno de brotar um instinto vingativo naquele momento?


Não houve conversa, mas apenas uma troca de olhares de forma singela com levantadas rápidas de sobrancelhas enquanto eram acertados os últimos detalhes para o procedimento.


Se por um lado as mulheres estão anos luz a frente, desconstruindo o corpo marketizado e a feminilidade atrelada ao “do lar”; do outro lado a machaiada está saindo da fase primata. Discreta, a secretaria sabia que estava diante de algo mais sensível que uma menininha em sua primeira consulta ginecológica, estava diante de um homem no auge dos seus quarenta anos, quase na crise da meia idade.


Se o seu estado de moleza ou sua caverna peluda foram vistos, ele resolveu ignorar. Apenas afundou-se para dentro do avental azul como uma fimose, estava pronto para gritar, não pela masculinidade, mas pela mãe.






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